A partir de 2023 a União passa a transferir, de modo inédito, recursos de manutenção da educação básica por resultados. A menos de um mês do fim do ano, no entanto, o MEC (Ministério da Educação) não definiu os critérios de distribuição desse dinheiro, previsto com o novo Fundeb.
O Fundeb é o principal mecanismo de financiamento da educação básica e foi renovado em 2020, o que ampliou a complementação que a União faz ao bolo de impostos direcionados para prefeituras e governos estaduais com base no número de matrículas. O novo Fundeb prevê que um percentual desses recursos seja distribuído por resultados educacionais, com base no cálculo do VAAR (Valor Aluno Ano Resultado).
O governo Jair Bolsonaro (PL) precisa correr: os critérios e os cálculos para indicar os municípios beneficiados têm de ser definidos até o fim de dezembro para que os primeiros pagamentos ocorram em 10 de janeiro.
Essa demora —o prazo inicial era outubro— têm afligido municípios e também a equipe técnica do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação), responsável pelos repasses.
O governo estimou uma complementação ao Fundeb de R$ 39,9 bilhões no ano que vem. A parcela destinada para resultados será de 0,75% em 2023, o que representa um montante de R$ 1,8 bilhão, levando em conta essa estimativa do orçamento elaborado pelo governo.
A legislação define que o VAAR leve em conta uma série de condicionalidades, que combinam itens como redução de desigualdades nas avaliações de aprendizagem e cumprimento de exigências, como a determinação de escolha técnica de diretores de escola (no lugar de indicações políticas).
Houve definição até agora de uma metodologia que leva em conta redução de desigualdades de aprendizado entre negros e pobres apurados pelo Saeb (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica). Os termos dessas regras já receberam críticas de integrantes do gabinete transição da educação do futuro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
O modelo do governo Bolsonaro, oficializado em resolução publicada em novembro, considera essa redução de desigualdades a partir das médias entre negros e não negros, e dos 25% mais pobres e 25% mais ricos.
Integrantes da transição e do movimento negro advogam por um critério que leve em conta percentuais de estudantes por níveis de aprendizado, de modo a não apagar desigualdades dentro dos grupos.
“Esse indicador tem de ponderar mais a desigualdade e não o resultado médio. Tem de olhar qual a desigualdade maior entre os grupos e não a média”, diz a professora da UFOP (Universidade Federal de Ouro Preto) Zara Figueiredo, nomeada no grupo de transição na quinta-feira (1).
Figueiredo ressalta que essa é a primeira vez que o fator raça aparece em uma legislação como essa, mas, diz ela, há limitações. “É necessário olhar como cada grupo está dentro desses níveis de aprendizagem. Se não, vamos premiar redes que não necessariamente fizeram avanço.”
Especificar desigualdades nos índices é uma nova chave econômica que altera o enfoque genérico que sempre apareceu nos documentos oficiais, diz Cida Bento, liderança do movimento negro, conselheira do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades) e também integrante da transição.
“Quando digo que, se melhorar a desigualdades você vai ganhar mais recursos, isso faz com que as coisas se transformem. Mas é preciso criar uma base de apoio ampla da população, uma campanha que explique por que o corte racial é importante”, diz Bento.
Lideranças negras no grupo de transição, como Bento e Figueiredo, já planejam um documento em que apontarão possíveis melhorias nos critérios do VAAR com relação ao combate às desigualdades.
Questionado, MEC e Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) não responderam. A resolução do mês passado foi elaborada pelo instituto.
Integrantes da área técnica do Inep relataram à Folha que há dentro do órgão o entendimento de que esses instrumentos precisam de revisão não apenas no ano que vem, mas de modo permanente. A resolução do Inep leva em conta os resultados do Saeb entre 2017 e 2019, uma vez que os dados da prova de 2021 foram ignorados porque ficaram comprometidos por uma baixa participação de alunos na pandemia.
A complementação da União ao Fundeb representará, em 2023, 17% do bolo total do fundo. Até 2026, esse índice chega a 23% —era de 10% no modelo antigo.
O novo Fundeb previu um modelo híbrido de distribuição, em que parcelas da complementação são distribuídas a partir de três critérios diferentes. A maior parte leva em conta a realidade de gasto educacional dos estados e municípios, e uma parte menor (de 2,5% em 2026) vai pelos resultados —também há, entretanto, um crescimento escalonado desse percentual.
“A lei de regulamentação do Fundeb já ficou confusa e agora a implementação está gerando muita dúvida, falta clareza”, diz Mariza Abreu, consultora de educação da CNM (Confederação Nacional de Municípios). “Ainda tem de sair resolução com o indicador [de distribuição do VAAR], e depois uma portaria de estimativa com as redes contempladas, pode gerar bastante questionamento.”
Para acessar os recursos reservados para resultados, é preciso cumprir cinco condicionalidades:
provimento de cargo de diretor de escolar com critérios técnicos de mérito e desempenho,
participação de 80% dos estudantes no Saeb,
redução de desigualdades socioeconômicas e raciais no Saeb (foco da resolução do Inep),
alinhamento à Base Nacional Comum Curricular e
aprovação de legislação estadual que divide o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) com municípios levando em conta resultados educacionais.
Somente os estados de Minas Gerais e do Rio de Janeiro não aprovaram essa lei, o que não vai permitir que seus respectivos municípios estejam aptos a esses recebimentos. Segundo dados do MEC obtidos pela Folha, 4.363 municípios cumpriram os requisitos (já excluindo Rio e Minas).
A partir dessas condicionalidades, o MEC precisa criar um indicador para a distribuição em si, que deve levar em conta o nível e o avanço dos resultados médios na avaliação oficial da educação básica, taxas de aprovação no ensino fundamental e médio e as taxas de atendimento escolar —essa última leva em conta a inclusão de crianças e jovens que estão fora da escola.
O governo atual também não definiu um novo modelo de avaliação da educação uma vez que as metas do Saeb e Ideb (índice calculado a partir dos resultados das provas) foram estipuladas somente até 2021.
A transição garante que haverá avaliação de qualquer forma em 2023, sobretudo por causa dessa transferência por resultados. O MEC criou um grupo de trabalho para desenhar o novo sistema. Linhas gerais já foram apresentadas para secretários de educação, mas o governo não conseguiu finalizá-lo.
Paulo Saldaña, Folhapress