Um vice atrelado à direita, reprovado inicialmente por segmentos da militância e repelido por uma parcela dos dirigentes partidários é recebido com vaias ao ser entronizado como companheiro de chapa de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na eleição à Presidência da República –mas depois acaba aceito.
O roteiro do lançamento da dupla Lula e José Alencar, em 2002, tende a se repetir neste sábado (7), quando será apresentada oficialmente sua dobradinha com Geraldo Alckmin –exceto pela parte das hostilidades, na opinião de petistas ouvidos pela Folha.
O diagnóstico é o de que cenas como as vistas 20 anos atrás, com gritaria e apitaço, dificilmente ocorrerão desta vez porque o comando da legenda conseguiu pacificar atritos e porque Alckmin integra um partido do mesmo campo político, o PSB, diferentemente do PL de Alencar.
O anúncio da dupla que se sagraria vitoriosa naquele ano foi agitado.
O palco escolhido para a ocasião foi o Palácio das Convenções do Anhembi, local que esteve cotado para sediar a cerimônia de agora, mas acabou sendo substituído pelo Expo Center Norte, outro salão de eventos também na zona norte da capital paulista.
A oficialização de Alencar, empresário mineiro que morreu em 2011, se deu em junho de 2002, durante a convenção nacional do PT, encerrando meses de discussões sobre sua incorporação à campanha. Tanto lá como cá, Lula foi o grande fiador da aposta e domou os insatisfeitos. Mas nem todos.
Então secretário municipal da Juventude, Jaime Cabral se recorda ainda hoje da preparação do ato contrário ao candidato a vice. Os rebeldes fizeram faixas, botaram nariz de palhaço e ensaiaram o grito de guerra para quando ele fosse discursar: “Lula sim, Alencar não”.
“Falar depois de 20 anos é fácil, porque a história mostrou que a aliança acabou não sendo catastrófica, mas naquela ocasião achávamos inadmissível”, diz Cabral, agora com 45 anos. “E desta vez eu saudei a chegada do Alckmin”, segue ele, favorável a uma frente ampla contra Jair Bolsonaro (PL).
Jornais da época registraram o “clima de confronto” na reunião, já que uma ala reagiu às provocações com o coro: “Brasil decente, Lula presidente”.
“Um segurança do partido deu um soco em um dos adolescentes que protestavam, que caiu. Em seguida, outros seguranças estenderam bandeiras no local, para impedir que o conflito fosse filmado. O militante agredido não quis dar declarações à imprensa”, publicou a Folha.
Lula, que entrou no palanque “em meio a uma chuva de estrelas vermelhas de papel laminado”, também respondeu aos manifestantes. Disse que Alencar estava sendo vítima de preconceito, do mesmo tipo que ele próprio sofria quando colocava uma gravata e ia a um restaurante.
A rebelião puxada pela turma jovem, mas reforçada por militantes mais experientes, cessou depois do pito.
Antes, o presidente nacional do PL (partido que de 2006 a 2019 se chamou PR), Valdemar Costa Neto, também havia sido alvo de vaias. Para abafar, o marqueteiro Duda Mendonça mandou aumentar o volume do som, que tocava o jingle da campanha do PT, conforme relatou O Estado de S. Paulo.
“A nossa crítica era mais à coligação com o PL do que ao Alencar em si. Nem o conhecíamos direito”, diz Cabral. “Eu queria que as alianças fossem restritas ao máximo à esquerda, e hoje em dia desejo que amplie o quanto for possível. Talvez esteja mais na idade da razão.”
Na avaliação do historiador, agora distante da burocracia partidária, Alencar se mostrou um político afinado com o propósito de Lula ao chegar à Presidência e seu partido não teve a influência que ele temia na elaboração do programa de governo nem na condução do mandato.
“Acredito que não vai acontecer protesto de novo [neste sábado]. Acho difícil ter contestação, pela força enorme que o Lula possui dentro do PT. O partido tem uma dependência muito forte dele”, afirma Cabral.
“O clima é diferente do de 2002. No melhor dos mundos, eu preferiria que o Lula não se aliasse com o Alckmin, mas nós estamos em uma situação de risco da democracia. E, sobre o PL, nossa rebeldia não estava totalmente errada: é onde Bolsonaro está filiado.”
O acordo com o PL em 2002 era controverso também entre dirigentes da agremiação de esquerda e motivou brigas. A aliança foi aprovada com 43 votos a favor, 24 contra e 3 abstenções.
Alguns descontentes não compareceram à convenção, caso da então senadora Heloisa Helena, hoje na Rede Sustentabilidade –ela se contrapõe ao setor de seu partido que declarou apoio a Lula e prega voto em Ciro Gomes (PDT).
Pré-candidato a deputado federal pelo PT em outubro, recém-chegado do PSOL, Douglas Belchior tinha 23 anos quando participou do levante na solenidade com Alencar e também é cético quanto à possibilidade de reações indelicadas da plateia contra Alckmin.
“Era outro contexto, outro Brasil. Não éramos governados por um fascista apoiado por ‘milicos’. Nosso contexto agora se assemelha mais aos momentos da luta contra a ditadura militar, por anistia ampla, geral e irrestrita, por Diretas Já”, compara o ativista do movimento negro.
“O nome de Geraldo Alckmin não está em discussão, ele é o vice do próximo presidente do Brasil”, insiste Belchior.
Não é bem assim, se depender do dirigente petista Valter Pomar, um dos membros do diretório nacional ainda resistentes à presença do ex-tucano. Líder da Articulação de Esquerda (corrente interna da sigla), ele diz que estará no evento deste sábado, mas vai se conter e deixar críticas para depois.
Pomar, que pertencia à cúpula da legenda em 2002 e votou contra a composição com Alencar, afirma que também se posicionará assim em relação a Alckmin em junho, no encontro nacional do PT, que terá de aprovar a indicação do filiado do PSB para o posto.
Um documento da Articulação de Esquerda já chamou o ex-governador de São Paulo de golpista e de “um Temer em potencial”, em alusão ao então vice de Dilma Rousseff (PT).
O texto afirmou ainda que Alckmin “saiu do PSDB [em dezembro], mas o PSDB não saiu dele” e considerou que o ex-presidente faz uma concessão à direita e ao neoliberalismo ao se juntar ao outrora adversário. O grupo defende alguém com maior afinidade programática e mais confiável.
“Em junho haverá delegados e delegadas votando contra esse vice. Mas no sábado só haverá manifestação a favor do Lula”, diz Pomar, que estima em 5% o percentual de dissidentes entre os delegados partidários.
O deputado federal Rui Falcão (SP), um dos primeiros líderes do partido que foram a público repudiar a junção com Alckmin -disse à Folha de S.Paulo em janeiro que o ex-tucano era uma contradição a tudo o que o PT fez–, agora aparenta estar conformado.
“Eu me posicionei e a maioria do partido foi em outra direção. Está resolvido internamente. Já estive ao lado de Alckmin em eventos. Queremos que ele venha para agregar à campanha. Não quero mais discutir essa questão, todo o mundo sabe qual vai ser o resultado. Me inclua fora dessa”, afirma.
Na entrevista do início deste ano, ele disse que “ninguém aferiu até hoje” se o papel de avalista atribuído a Alencar e a Carta ao Povo Brasileiro, destinada a acalmar os mercados, foram responsáveis pela vitória de Lula em 2002.
“Na época se dizia que o Lula não tinha experiência e não era confiável porque ia quebrar contratos. Hoje o Lula tem uma reputação real de estadista. […] Então, ele não precisa de uma muleta eleitoral, como seria a presença do Alckmin”, afirmou.
Lula desestimula as comparações entre Alencar e Alckmin, sustentando que “são dois homens diferentes”. As vaias de 20 anos atrás foram relembradas nos últimos meses por integrantes do partido, que pontuaram, no entanto, distinções com o quadro atual.
O ex-presidente não tinha, por exemplo, tanta hegemonia entre os correligionários. Teve que se submeter a uma prévia para a escolha do presidenciável, contra o então senador Eduardo Suplicy, que recebeu 15,4% dos votos. Hoje, após a passagem pelo Planalto, sua palavra na legenda é quase sempre a última.
Outro argumento para justificar o movimento ao centro que alocou Alckmin na vaga de vice é o desafio de evitar que o atual presidente seja reeleito. Ademais, Bolsonaro é tratado na como uma ameaça à democracia e um adversário diante do qual táticas excepcionais e inflexões seriam válidas.
Em 2002, o então presidente do PT, José Dirceu, defendia a composição com forças situadas à centro-direita com justificativas repisadas agora. Dizia que alianças não comprometiam o programa de governo petista e que o partido precisava delas “não para disputar a eleição, mas para governar”.
Joelmir Tavares/Folhapress