Quando Gabriela da Conceição Rodrigues e uma colega, ambas negras e juízas do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), frequentavam os fóruns da capital paulista sabiam que tinham que ter nas mãos a carteira funcional para provar que eram magistradas.
Ao entrar, por exemplo, em estacionamentos ou elevadores exclusivos de juízes, elas sempre eram barradas, exceto quando deram carona para uma colega branca.
“O que vou contar não é um processo de sofrimento, mas uma constatação para ver como muita coisa precisa mudar. As pessoas não nos enxergavam como juízas”, diz Gabriela, 34, juíza de direito titular da Vara Criminal de Franco da Rocha.
Segundo ela, a reação das pessoas na sala de julgamento também é diferente quando é uma mulher negra presidindo a audiência. Gabriela afirma que colegas homens brancos relatam não ter problemas de serem interrompidos ou de haver discussão na audiência —o contrário da sua experiência.
“Eu sempre fui interrompida, porque as pessoas não enxergam em mim uma figura de autoridade. Não que eu quisesse que elas enxergassem no sentido de arrogância, porque não acho que é assim que funciona, mas, em uma audiência, eu inspiro menos respeito que um homem branco”, afirma.
Relatos assim foram comuns nas entrevistas com cinco juízas estaduais e uma magistrada federal na pesquisa de mestrado da advogada Raíza Feitosa Gomes, na Universidade Federal da Paraíba, em 2018. A dissertação deu origem ao livro “Cadê a Juíza?” (Lumen Juris), título que vem do questionamento ouvido pelas magistradas.
Raíza, que atua no Instituto Guaicuy, afirma que há diferentes formas de lidar com o racismo imposto pela sociedade. O silenciamento, por vezes, torna-se estratégico em um espaço majoritariamente branco.
“O Brasil lida com o racismo de forma bastante problemática. Pune as pessoas que sofrem com o racismo e não quem pratica. Não falar sobre isso pode ser uma forma de resistir”, diz.
Estudo feito pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) sobre o perfil de mais de 11 mil magistrados mostrou que, entre as mulheres, as negras são 11,2% (365) das juízas titulares e 12,1% (45) das desembargadoras.
Uma das juízas ouvidas por Raíza contou a história de uma menina negra que ao sofrer racismo na escola tentou mudar a cor da pele com pó branco. A mãe, então, mostrou o retrato da magistrada para a garota e, depois, conseguiu marcar um encontro das duas. Dali em diante, a menina passou a dizer para todos que será juíza.
Ouvidora no TRT (Tribunal Regional do Trabalho do Paraná) da 9ª Região, no Paraná, a desembargadora Neide Alves dos Santos, 62, conta que ao ver um juiz negro, quando era funcionária da Justiça do Trabalho em São Paulo, percebeu que também poderia exercer o cargo, algo que espera despertar em outras mulheres negras.
Natural de Mogi das Cruzes, na região metropolitana, ela diz que fez vaquinha para se matricular na universidade e trabalhou para pagar os estudos. Formada nos anos 1980 como única negra da turma, ela afirma que o debate sobre diversidade era menos presente.
“Era muito velado. Óbvio que me impactou o fato de olhar para o lado e não reconhecer pessoas iguais a mim. Faltava e ainda hoje falta representatividade”, diz ela, que é presidente da comissão de raça e gênero da corte.
Para Neide, o padrão das decisões do Judiciário no país também reflete o perfil do homem branco heterossexual. “A gente precisa de diversidade em todos os sentidos inclusive racial para ter decisões que passem a ser mais equânimes.”
No TJ-MA (Tribunal de Justiça do Maranhão), a desembargadora Angela Maria Moraes Salazar, 64, também se deparou com esse cenário ao ingressar na magistratura na década de 1980, depois de atuar como delegada de polícia e promotora.
“Foi desafiador, porque não tinha nenhuma juíza negra como referência. Tinha brancas, mas negras não. Até hoje carrego esse desafio, porque desembargadora só tem eu de negra e a responsabilidade aumenta muito mais”, diz.
Angela terminou neste mês o mandato de dez meses como presidente do TRE-MA (Tribunal Regional Eleitoral). Ela conta que à frente da corte implementou uma política institucional para enfrentar a violência política contra as mulheres e candidaturas fictícias. Agora, pretende se candidatar para uma vaga no STJ (Superior Tribunal de Justiça).
A presidente do TJ-RS (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul), Iris Helena Medeiros Nogueira, 65, antes de assumir a função, não participou de grupos em defesa dos direitos das mulheres ou dos negros, mas quando tornou-se a primeira mulher e negra a presidir o Tribunal de Justiça gaúcho, em 148 anos de existência, a questão racial veio à tona.
“Isso se deve a luta de muitas mulheres. Para que hoje eu desfrute disso, reconheço que é graças à luta das mulheres negras e das mulheres de modo geral, que sedimentaram o meu espaço”, afirma.
Gabriela Rodrigues, juíza em São Paulo, tornou-se magistrada em 2018, depois de um longo processo. Ela foi contemplada pela política de cotas na primeira fase do concurso, mas nas seguintes enfrentou percalços para provar a experiência jurídica. Precisou acionar um advogado e fez a prova oral no penúltimo dia.
Em entrevista à Folha, Fabiana Severi, professora da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, afirmou que essa ascensão das mulheres na carreira é prejudicada por regras masculinizadas. No caso das magistradas negras, soma-se o racismo institucional.
“Não dá para fazer combate à fome, à violência contra as mulheres e pensar as questões estratégicas do país sem reforçar o direito antidiscriminatório. Isso passa por aumentar a paridade de pessoas negras no círculo do poder”, diz.
Raíza afirma que o fato de o STF (Supremo Tribunal Federal) nunca ter tido uma ministra negra ilustra uma série de dificuldades impostas para essas mulheres, entre elas o não reconhecimento.
“A sociedade invisibiliza essas mulheres e elas precisam ser extraordinárias para acessar esses espaços, enquanto pessoas brancas podem ser medianas”, diz.
Para a desembargadora Maria Ivatônia Barbosa dos Santos, do TJDFT (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios), o STF ainda não teve uma ministra negra por falta de boa vontade de quem indica, porque competência e capacidade as mulheres negras têm.
“Este é o momento que aparentemente tem tudo para haver uma indicação de uma mulher negra”, afirma ela, por causa das iniciativas de comissões e as discussões sobre equidade racial no Judiciário nos últimos anos.
Segundo a desembargadora, essa indicação já passou da hora. “Se não entenderem que esse é o momento é uma pena para o país”, conclui.
A desembargadora Iris Helena considera que é só uma questão de tempo para se ter uma mulher negra na função. “Estamos ocupando os espaços e que as nossas juristas negras se habilitem a estas vagas. Vamos viver essa experiência”, afirma.
Graças à atuação de anos do movimento negro e de mulheres negras, Raíza diz é mais difícil ignorar a falta de representatividade nesses espaços.
“É preciso que as pessoas brancas se responsabilizem por isso. A questão da diversidade muitas vezes é tratada de forma rasa, sem mexer no que precisa ser mudado.”
Géssica Brandino e Priscila Camazano/Folhapress